7 de abr. de 2017

ALMANAQUE DO ROCK RORAIMENSE – CAP. 07 - MENTIRA ROCK FEST


Por Victor Matheus – Blog Roraimarocknroll

Sou de uma geração do rock roraimense que vivenciou uma época em que fazer rock em Boa Vista era sinônimo de estar no underground da cultura. Bandas de rock eram marginalizadas e os espaços e oportunidades para shows escassos. 

No início dos anos 2000 o sonho de muitas bandas se resumia a chance de tocar algumas músicas nas festas promovidas no Malocão do DCE da UFRR, uma jam session no Bar Ville Dumont, uma festa de aniversário de algum amigo roqueiro, ou ficar na fissura do lado do palco das casas de shows ou eventos com bandas ao vivo esperando alguma chance ou boa vontade da banda ceder o palco para os amigos roqueiros se divertirem. 

Organizar shows e festivais eram desafios imensos, não só para os organizadores desses festivais, também para as bandas, que não tinham em sua grande maioria, acesso a equipamentos e instrumentos de boa qualidade, e quando havia oportunidades para tocar em algum lugar, geralmente a estrutura de som não passava de algumas caixas wattson, cubos frahm ou meteoro, microfones de karaokê, tudo junto e ligado em algum fio desencapado de um ponto de energia que geralmente queimava todo o equipamento nos primeiros quinze minutos de show. 

Créditos: Arquivo Blog Roraimarocknroll
Yori Deva e o Blogger no 1º Mentira Rock Fest

Outro desafio para as bandas e um enorme agravante nessa época era a polícia, que em 99% das vezes aparecia nos shows, principalmente nas praças da cidade e nas festinhas de aniversário, de rock e bebedeiras, para encerrar o “barulho” por alguma reclamação dos vizinhos ou por falta de autorizações legais para uso dos espaços públicos ou em ambientes privados. 

Em contrapartida as bandas desse período eram muito unidas, sagazes e dispostas, além de serem bem diversificadas em seus estilos. Umas das razões desse sentimento de unidade que prevalecia no rock local era o fato puro e simples de que os rockers eram em sua grande maioria jovens sem dinheiro algum ou condições de adquirir bons equipamentos. As bandas emprestavam e dividiam entre si seus instrumentos, equipamentos e até integrantes.

Créditos: Os Rocks
Sofia Não foi a Escola no 2º Mentira Rock Fest

Quando havia, por exemplo, um show na pista de Skate da Praça Ayrton Senna, quatro ou cinco bandas reuniam seus instrumentos e equipamentos de ensaio para montar um som tosquíssimo, o suficiente para que cada músico ligasse seu equipamento e fizesse algum barulho. 

O público dessa época também era o mais alucicrazy, alternativo e com personagens cabulosíssimos. Skatistas se misturavam aos punks que se misturavam com os headbanguers, que se misturavam com os indies, que se misturavam com “os playboys” que se misturavam com os regueiros, que se misturavam com curiosos, numa simbiose harmônica de pessoas de pensamentos, gostos musicais e visual totalmente antagônicos, todos numa “relex, numa tranquila, numa boa”... Ainda encontramos pela cidade alguns desses personagens icônicos dessa época, entre eles o ‘Capota’ e Márcio ‘March’ Ramone.

Créditos: Ruben Murillo
Márcio March Ramone e Yori Deva - Rock Underground - 1º Mentira Rock Fest

Com o surgimento do Espaço do Rock do Sesc Centro em 2004 a cena rock ganhou um verdadeiro oásis para expandir e amadurecer. Com o fomento do Sesc Roraima bandas pipocaram para todos os lados, e os eventos ganharam maiores proporções acompanhado de um público cada vez mais disposto a ouvir e apoiar o rock local.

Cartazes reunidos do Mentira Rock Fest

Em 2006, os amigos e rockers Tiago ‘Euodeioforró’, Yori Deva, da banda Espirito Juvennil e João ‘Jones La Migra’ se uniram para organizar um dos festivais mais emblemáticos na história recente do rock local, o Mentira Rock Fest. 

Segundo Tiago, um dos organizadores, a ideia do festival era “brincar com o dia da mentira, já que a primeira edição do festival acontecera no dia 01 de abril”. 

A primeira edição do Mentira Rock Festival aconteceu no dia 01 de abril de 2006, ao lado do palco da Praça Velia Coutinho e contou com os shows de 11 bandas locais, entre elas Sofia Não foi a Escola, K’Dáver, Arroto do Sapo, Supernova, Ironia, Sheep, Lepthospirose, LN3, Mr Jungle, Estado de Coma e Moon Hunters.

Créditos: Ruben Murillo
Supernova, a primeira, no 1º Mentira Rock Fest

Seguindo a filosofia da cena daquela época, o 1º Mentira Rock Festival reuniu várias bandas de estilos diferentes, público diversificado, e a metodologia de organização alternativa daquele período, unindo equipamentos de som de amigos e sem frescuras e mimimis, no melhor estilo ‘faça você mesmo’. 

Nessa época eu ainda tocava guitarra na banda Mr Jungle e nesse show aconteceu um dos momentos mais sublimes e inesquecíveis na história da banda na fase que participei. Éramos uma das poucas bandas autorais da cena nesse período, e o publico ainda tinha resquícios de uma aversão ao som autoral, principalmente quando rolava bandas covers, de metal e seus subgêneros, tocando no mesmo evento, mas nesse festival tocamos com tanto tesão, e a atmosfera do evento e o espírito de liberdade palpável no éter era tão notório, que o público foi arrebatado como nunca tinha visto antes... 

Créditos: Ruben Murillo
Sofia Não foi a Escola no 1º Mentira Rock Fest

No final do show, ao som de 'Fazendo Rock N’ Roll’ presenciamos um público insano acompanhando a banda, dançando e bangueando na frente do ‘palco improvisado’ num dos momentos mais felizes da minha passagem pela Mr Jungle e também um dos mais inesquecíveis de todos os shows, que foram muitos, que toquei na Praça Velia Coutinho.




Banda Mr Jungle tocando 'Fazendo Rock N' Roll' no 1º Mentira Rock Fest

Após o sucesso do 1º Mentira Rock Festival em 2006, mais três edições do festival aconteceram. A segunda edição rolou na Orla Taumanan no ano seguinte, e reuniu 10 bandas: Sofia Não foi a Escola, K´Daver, Espirito Juvennil, Mr Jungle, Iekuana, Arroto do Sapo, Os 24 da Vovó, Hangar HC e banda 11 de Setembro.

Esta edição deu continuidade a essência que deu origem ao festival, reunindo várias tribos, e bandas diferentes. Foi um dos últimos shows de uma das bandas mais legais e originais que o rock local já produziu, a Sofia Não Foi a Escola. Nesta edição também rolou o show de outra banda emblemática na cena hard core de Boa Vista, a Hangar HC. Para mim foi um festival de despedidas, reunindo muitos amigos e shows bem legais em um dos cartões postais de Roraima.

Créditos: Os Rocks
Banguers da velha guarda do rock roraimense no 2º Mentira Rock Fest

A terceira edição do Festival aconteceu na SINPOL, dia 05 de abril de 2009, reunindo 16 bandas, entre elas a K’Dáver, Arroto do Sapo, Hangar HC, Espirito Juvennil, HCL, Veludo Branco, Several Bulldogs, Alt F4, Iekuana, Mr Jungle, Defeto Social, 24 da Vovó, Ironia, Motorcycle, Belinni e Imperial Thorn. Esta foi a maior edição em termos de estrutura e programação, e também a única que cobrou ingresso com valor simbólico de R$ 3,00 para cobrir os custos de estrutura, atitude muito justa e que elevou a qualidade do evento.

Lembro-me do caos etílico que foi a edição de 2009, uma das mais insanas que prestigiei e também toquei. A SINPOL desentocou nessa época muitos headbanguers adormecidos, principalmente dos bairros mais distantes do centro. Era incrível ver o estacionamento cheio de bikes estacionadas, corotes de 86 voando para todos os lados e o cacete comendo na frente do palco, com várias rodas de headbanguers se quebrando e se divertindo como se o mundo fosse acabar no dia seguinte. Boas, nostálgicas e deliciosas lembranças dessa edição.

Créditos: Os Rocks
As autointituladas 'Fêmeas do Rock' no 2º Mentira Rock Fest

A quarta e última edição, até agora, aconteceu dia 14 de abril de 2012, no Bar Roraima Moto Clube, e reuniu as bandas Interceptor, Iekuana, Konvictus, Mr Jungle e Jamrock. Esta foi a edição que teve a melhor estrutura de som, com palco, tenda, faixa, e equipamentos profissionais, mas em contrapartida foi a menor em número de bandas.

Tiago relembra como foi organizar a primeira edição do festival e as ideias para as edições seguintes: “decidimos que iria acontecer outras edições e que todas as bandas da 1º edição teriam vaga nas edições seguintes e que o repertório seria livre, independente da banda tocar autoral ou não”.

Créditos: Canoa Cultural
Márcio March Ramone e o público do 4º Mentira Rock Fest

Esta atitude dos organizadores representa bem qual era o espírito do rock local até meados de 2008, onde não havia ainda as panelas de grupos tão criticadas hoje no rock. Bandas covers e autorais tocavam juntas, havia um respeito mútuo com bandas e roqueiros mais antigos. As novas bandas eram abraçadas pelos veteranos, e existia uma fraternidade sincera, algo muito raro de se ver hoje no rock de Roraima.

Enquanto pesquisava sobre a história do Mentira Rock Festival perguntei ao Tiago, um dos idealizadores, se havia planos de uma 5ª edição. Segundo Ele “há a intenção de fazer uma 5ª edição, só que em um formato diferente e que possa ficar marcado na cena local... Como o evento não visa e nunca visou ganhar dinheiro e ter bilheteria é mais complicado conseguir tudo e bancar tudo”. Concordo com Ele.

Créditos: Canoa Cultural
Banda Interceptor no 4º Mentira Rock Fest

Se outras edições do Mentira Rock Festival acontecerão no futuro não sabemos, mas a história do Festival, o que ele representou e ainda representa na memória recente do rock de Roraima, o contexto e época em que aconteceram todas as edições, fazem dele um capítulo essencial para compreendermos e conhecermos os caminhos que bandas e a própria história do rock local percorreu para tornar-se o que é hoje, em seus momentos de glória e também de diferenças e atritos.

A melhor lembrança que guardo do Mentira Rock Fest é de presenciar a união de ideias, do amor pelo rock e de amigos com sonhos em comum que se reuniram para dar vida a uma ideia original e inspirada. Esse é o verdadeiro espírito rock n’roll que tanto admiro, respeito e escrevo com devoção neste Blog.



Banda Sheep tocando Blitzkrieg Bop no 1º Mentira Rock Fest

São rockers visionários como Yori, Tiago, Jones La Migra, e tantos outros que já citamos em outras publicações e séries neste Blog, essenciais para a história seguir adiante. Sem caras com as atitudes semelhantes desse trio de roqueiros e amigos que citei talvez muitos de nós, roqueiros na casa dos 30 e 40 anos, jamais teríamos alcançado o reconhecimento que temos, e as oportunidades de levar adiante o nosso trabalho, a nossa música, os nossos sonhos de viver o rock n’roll em sua essência máxima.

Créditos: Arquivo Blog Roraimarocknroll
Mr Jungle no 1º Mentira Rock Fest

A história continua, e quem sabe muito em breve, em qualquer abril do futuro o Mentira Rock Fest retorne a cena rock local, e de preferência com o mesmo espírito, reunindo velhos e novos roqueiros, para curtir o que mais amamos: o bom, o velho, o autêntico e revolucionário rock n’roll.

Fecha a Conta.

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